Depoimento de Gheovah Motta - 1984 - Museu Regional/ IPHAN

Fita 1 - lado B

TENENTE EM SÃO JOÃO DEL REI

A 20 de janeiro de 1928 fui declarado aspirante a oficial. No mesmo dia, no Ministério da Guerra, a grande surpresa: "o governo neste ano não mandará ninguém para o Norte". Entre os infantes nordestinos foi um alvoroço, uma sensação de logro.
À minha frente apareceram desoladas as figuras de D. Rita e do Clodoaldo, já entregues aos entusiasmos da festa que preparavam para a recepção do filho tenente.
Para aquele transe eu só levara uma opção: Belo Horizonte, e quando me disseram, para lá também ninguém vai, fiquei sem condições de decidir nada. O mapa do Brasil gira girava na minha cabeça sem parar. Ã minha frente um general soleníssimo me esperava. Ele disse para o seu Ajudante de Ordem: "Ajude o rapaz".
Como por encanto um fato ocorreu. Um grande livro que estava sendo folheado sob meus olhos parou numa página providencial. Nela estava escrito: "11º Regimento de Infantaria - S. João Del-Rei". Este nome eu lera havia tempo numa biografia do Aleijadinho. De pronto tranqüilizado disse ao General: "Escolho São João Del-Rei".
A roda do destino estava marcando ponto em meu favor. Assim aquele S. João Del-Rei entrou na minha vida para não mais sair. Depois de um mês no Rio de Janeiro, empreendi a minha viagem. Pela primeira vez eu estava só no mundo. Até então sempre tutelado, sempre com gente em torno de mim. Lá em casa minha mãe, meu pai, no Colégio Militar a organização militar, na Escola Militar a organização da Escola. Tudo, eu sempre tinha quem estivesse tomando conta de mim. Pela primeira vez eu estava só no mundo. Na Central do Brasil tomei pelas 8 horas um trem que me pareceu muito em ordem. Nas curvas eu olhava a máquina que me parecia em gigante comedor de distâncias e que pelas 15 horas já me levara até uma cidade chamada Barbacena. Saltei e tirei os meus pertences e entrei para outro trem. Este muito pequeno demais, trenzinho de brinquedo. Quando a sombra do acaso nos envolveram a ele e a mim, começamos a encontrar dentro da noite uma série de estaçõezinhas com nomes tais como Campo Lide, Santa Rita, Barroso. Fui sendo penetrado por uma onda de melancolia indizível. Foi quando comecei a pensar se tinha sentido aquela viagem e aquele destino. De repente, a maquinazinha resfolegando valente, começou a bimbalhar, como em diálogo comigo e me foi levando célere para uma gare muito iluminada onde logo descobri as fisionomias conhecidas de colegas de turma. A chegada do trem da noite, vindo do Rio, aqui em São João era um acontecimento. Vocês não podem calcular. Ia à estação para receber o trem quem ia receber pessoas e quem não ia, porque era assim uma espécie de "happening". As pessoas aconteciam indo à estação. A gare era muito iluminada.
Ficava feéricamente iluminada. Havia um ambiente alegre, de festa, abraços. Não havia ônibus, não havia rodoviárias. O trem captava tudo para tirar daqui e trazia tudo que vinha do Rio. Era uma hora importante, onde logo descobri as fisionomias conhecidas de colegas de turma que tinham me antecedido na vinda para cá, que eu ainda fiquei um mês lá no Rio marombando muito. Quando estávamos aos abraços, um carrilhão bateu oito pancadas. Não entendi, porque no meu relógio estava marcando 19:30 horas. Disseram-me logo: "A Igreja na Matriz tem o seu código especial. Trate de aprende-lo para compreender o tempo". No dia seguinte foi que verdadeiramente contemplei a cidade. A sua morraria, o pequeno rio dividindo-a em duas bandas, suas pontes, o seu casario vetusto, onde à primeira vista ressaltavam alguns primores da arquitetura colonial, altaneiras igrejas aqui e acolá. Às 13 horas apresentei-me no 11º Regimento. Rigorosamente dentro das normas regulamentares, fardado de branco com a espada de oficial. Então agora tudo ia começar. Era como se para viver aquele momento eu estivesse me preparando durante nove anos, desde quando em 1919 matriculei-me no Colégio Militar. Até aqui as normas, as regras, as teorizações. Agora eu via enfim as realidades quentes da profissão militar: o pelotão de recrutas, o serviço de oficial do dia, as sessões de instrução para cabos e sargentos.
Não eram poucas as tarefas e não obstante procurei sobrecarregar-me com outras extraordinárias. O trabalho extre procurei-o por uma questão de estado de espírito.
Acredito que as feridas íntimas resultantes de não estar com os meus no Ceará foram-me levando para uma atitude vizinha do ressentimento e me colocaram na disposição de reduzir ao mínimo o meu relacionamento com a terra mineira. Uma forma de fazer isso seria aturdir-me no trabalho e por ele manter-me preso ao Regimento pela manhã, à tarde e à noite. Inclusive eu fui morar lá em cima, no quartel. Disseram-me que a biblioteca estava sem encarregado. Logo pedi ao Coronel Comandante a minha designação para esse lugar. Soube que a Escola Regimental, que funcionava à noite para a alfabetização dos recrutas comportava o trabalho de um oficial supervisionador. Consegui ser nomeado para esse mister. O fato é que não me fizeram mal, nem a Escola nem a biblioteca, ao contrário, ajudaram-me a vencer aquela crise que não passou na verdade de um último tributo que paguei à adolescência. Sim, elas me ajudaram e sobretudo me ensinaram muito. Pela primeira vez os livros, a minha paixão, me apareciam não para serem lidos, mas para serem tratados, ordenados, vamos dizer para serem mimados. Encontrei-os em péssima situação, jogados a esmo nos armários que por sua vez estavam jogados num desvão que recebia pouca luz e pouco ar. Muito cuidei deles, os coitadinhos. Um dia o Coronel Comandante perguntou: "Como vai a sua biblioteca?" Respondi-lhe: "Não vai bem Comandante. Há poucos livros e nenhum leitor". E ele com certa ironia: "E como conseguir leitores?" Retruquei: "Com duas providências: melhorar as coleções e arranjar um lugar menos escondido para colocá-las". Acho que a partir desse diálogo o Comandante me levou mais em conta e me ajudou eficazmente a fazer daquela mostra de livros uma pequena biblioteca. O que estou fazendo no Instituto de certa maneira é uma repetição. A escola de alfabetização me valeu muito. Ela foi um meio de ver mais de perto e mais por dentro aquele homem mais recém saído da sua grota e da sua pirambeira e que o quartel acabara de vestir com uma farda de soldado. Na aula, à noite, procurando dar-lhe a escrita, a leitura e a conta, pude surpreendê-lo em suas motivações mais íntimas. Nos pátios de instrução, por mais que um instrutor se esforce para se comunicar com o soldado, não consegue vencer de todo a barreira que o separa, resultado não só do formalismo militar, como de um movimento de defesa, que leva o recruta a recolher-se à sua crosta como um aruá. Na escola, não sei se porque se sente menos soldado ou então acha que o tenente é menos tenente, o fato é que ele se abre um pouco e deixa qui e ali que nos seja possível entrever certos desvãos da sua alma singularíssima. Vivi essa experiência e assim posso dizer que o meu conhecimento do homem mineiro começou pelas camadas mais pobres, pelos capiaus que habitam o interior, antes que pelos engravatados citadinos, urbanizados, que eu só encontraria mais tarde nas ruas e nos cafés de São João del-Rei.

Passados uns dois meses da minha chegada, meus problemas íntimos foram se resolvendo e eu me voltei para São João com uma vontade enorme de senti-lo e compreendê-lo. E fui aos poucos sendo dominado pelas suas auras, seus feitiços, sua poesia. Comecei indo até onde a cidade finda, já no sopé do Senhor dos Montes, já próximo das encostas históricas, feridas pelas betas, longos e profundos sinuosos sulcos abertos pelos mineiros do século XVIII em procura do ouro. Essas betas atraem a nossos olhares, suscitam nossas meditações. Impossível deixar de ver nelas soterrados os sonhos, as alegrias, as canseiras das gerações que fizeram São João.
Depois conheci certos becos que transportaram para os velhos tempos de 1750 de tal modo nele tudo se mantinha intocado: muros, pedras, cantarias, beirais, portadas. A cidade era uma lição de história mas não assumia ares de museu. O seu passado não era triste nem deprimente, ao contrário, havia qualquer coisa de leve e alegre no ar, como que as pessoas de hoje e as de ontem ali se encontravam para comemorar juntos, festivamente, o milagre dos tempos que não morrem mais. A primeira vez que eu fui ao Ouro Preto, depois de três horas eu já não suportava mais o ar de museu (...). Depois foi a vez de ver e admirar o ritmo da cidade, a harmonia que ali se conseguiu entre o tempo e a vida. Depois vocês me dirão se isso é literatura: "Aqueles dois, na manhã alta, vão ruminando seus pensamentos, cada um com seu mister na cabeça. Eis que se encontram, porém, na Ponte da Cadeia e se deixam a conversar seus bons 40 minutos. Nos cafés, as conversas de hora inteira sobre negócios, política, vida. Não são homens desocupados ou indolentes, são pessoas ativas e diligentes, mas conhecem o segredo do tempo, sabem que não chegarão atrasados aonde precisam chegar. Para ajudá-los dispõe de uma preciosa ajuda: o relógio da Matriz. De 15 em 15 minutos o carrilhão desdobra sobre toda a cidade suas notas graves, ressonantes e amigas. Naquele tempo o carrilhão tinha mais força do que hoje. Quando tocava 11 horas, se eu estivesse em Matosinhos se ouvia as 11 horas. Elas lembram aos dois da Ponte da Cadeia que chegou a hora da despedida.
Elas penetram nas copas e cozinhas, lembrando à cozinheira que chegou a vez do refogado. Dizem ao colegial que é hora de arrumar os livros. Saem pelo vale e pelos montes colocando todos dentro do tempo justo. Quantas vezes da Ponte da cadeia não tive ocasião de observar o que acontece quando o carrilhão repica! As despedidas de uns, a chegada de outros para os encontros marcados, as conversas do Café Rio de Janeiro que se encerram, as janelas que se fecham, os escolares que passam álacres na direção dos seus grupos. Ah São João Del-Rei medido, organizado e funcionando".

E o São João pitoresco? (...) Naquele tempo o campo invadia a cidade a todo momento. Vinha pela manhã cedo nos burricos que traziam os camburões de leite.Vinha nos cargueiros que traziam das fazendas mantimentos diversos: arroz, feijão, rapadura. Às vezes entrava também os carros de boi, pesados e rangendo. Aparecia nas carroças que carregavam a lenha, o carvão, as frutas. Não me esqueço nunca da manhã em que vi a moça puxando o seu cavalo, descalça, retirando da sua carga laranjas, mangas e verduras e fazendo seu comércio de porta. Ela vinha da Colônia. Ela era loura, forte, rosada e risonha e eu fiquei pensando: "Eis a poesia solta no mundo".

No quarto das minhas impressões sobre São João Del-Rei não pode faltar nenhuma referência à vida religiosa. Ela era, naqueles idos, tão presente em tudo que logo feria a atenção dos mais desatentos. A começar pelas igrejas, algumas delas como a de São Francisco, a da Matriz e a do Carmo, muito grandes e imponentes mesmo, ricamente paramentadas. Para quem como eu vinha do Ceará, terra pobre, de igrejas pobres, eram de deslumbrar. Mas não só essas três, todas elas, umas dez ao todo, agasalhavam práticas religiosas ricas de contrição e fervor. Não somente as missas, mas também as novenas, muito freqüentes à noite, eram horas de emoção espiritual muito características da sociedade mineira que me foi dado ver naquele ano de 1928.
Hoje eu não escreveria assim em face do quadro de hoje. Na Semana Santa as cerimônias se revestiam de uma solenidade e de uma pompa como eu nunca vira. A procissão de 6ª feira, realizada à meia-noite, impressionou-me de um modo especial.
Sob o brilho das estrelas, no céu muito atentas, o brilho de milhares de tochas dispostas em duas filas enormes, uma de cada lado do trajeto. De mistura com as tochas acesas, o colorido das Irmandades, onde senhores solenes, vestidos com roupas características, imprimiam ao conjunto o passo tardo das marchas majestáticas. No final a grande aglomeração dos acompanhantes. Aquele espetáculo religioso chegou a comover-me, sobretudo quando em determinado momento tudo parou, fez-se um silêncio profundo e vi num palanque sobranceio a multidão, o vulto de uma moça vestida de branco elevando e expondo um pano onde se via manchas avermelhadas e linhas configurando uma fisionomia torturada. Disseram-me: "É a Verônica, e o que ela mostra é a fisionomia de Cristo numa cena do Calvário". Logo a moça vestida de branco cantou numa voz límpida e bem timbrada. A multidão atingia um alto grau de emotividade. Saí dizendo: "Fé e poesia". A Verônica naquele ano foi a Julieta.

Num dia, no Café Rio de Janeiro, numa roda de militares e civis, um destes dizia: "Vocês precisam ver o que o Governador Antônio Carlos está fazendo em matéria de instrução. Minas é atualmente o Estado que mais gasta com escolas. Novos grupos escolares, reaparelhamento de sala de aula, novos métodos de ensino. É uma revolução". Dizia-nos isto o homem apontando-nos as crianças que passavam na rua numa revoada alegre rumo às escolas. O assunto interessou-me e ele me prometeu publicações a respeito. A partir de então passei a olhar mais atentamente para a cena diária da passagem da meninada com seus livros e sua alegria. E ao vê-la vi também as professoras que passavam apressadas na mesma direção. Descobri em suas fisionomias entusiasmo e força de vida. Levavam no olhar uma chama. Não me pareciam burocratas do ensino, mas sim sacerdotizas do ensino. Elas eram, aquelas moças professoras, na paisagem urbana rotineira, como que um fermento de progresso, o segmento consciente da comunidade, alerta às atividades criadoras das mudanças necessárias. Um dia uma delas me falou dos seus afazeres redobrados, às voltas com o método. Decrolni . Essas professoras de hoje não causam de maneira nenhuma essa impressão. Passavam sobraçando livros e cadernos, desciam da Rua Direita, subiam a Av. Hermillo Alves, entravam na livraria O Cachimbo Turco, frquentemente em grupo de três ou quatro. Me pareciam um ser coletivo mudando de forma e tamanho ao sabor da caminhada, mas mantendo unidade de decisão e propósitos. Eu ainda não lera Proust e não conhecia os encantamentos em que ficou mergulhado ao ver passarem nas ruas e praias de Balbec lês jeunes filles em fleur, pois os meus encantamentos à passagem das professorinhas de São João del-Rei não eram menores nem diferentes.

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